A proposta de emenda à Constituição que transfere a titularidade de terras do litoral brasileiro da Marinha para estados, municípios e proprietários privados voltou a ser discutida nesta segunda-feira (27), em audiência pública no Senado. Aprovada em fevereiro de 2022 na Câmara dos Deputados, a PEC estava parada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado desde agosto de 2023.
Reportada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), a PEC gera divergências. Organizações ambientalistas alertam que a aprovação da proposta pode comprometer a biodiversidade do litoral brasileiro, enquanto o relator defende que a mudança é necessária para regularizar propriedades localizadas em terras da Marinha e que as áreas geram prejuízos para os municípios.
Em entrevista com Rádio Nacional, a diretora do Departamento de Gestão Oceânica e Costeira do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Ana Paula Prates, explica que, na origem, a demarcação constitucional das terras da Marinha servia para defender a soberania nacional, mas hoje são territórios que protegem o população das alterações climáticas. Ela argumenta que a aprovação da PEC seria um grande retrocesso.
Leia trechos da entrevista.
Rádio Nacional: O que está em jogo neste momento?
Ana Paula Prates: É uma proposta de emenda à Constituição que elimina a natureza das terras da Marinha. E as terras da Marinha não são terras da Marinha, o que também é importante compreender: são terras da União. São todas terras influenciadas pela maré. Há uma linha de corte de 1831, que diz que acima dos 33 metros, acima desta última maré de referência de 1831, 33 metros para cima, são considerados terrenos da Marinha. Então, isso abrange a maior parte do nosso litoral, claro, e manguezais, dunas, até falésias, restingas, e a entrada dos rios também, onde você tem toda essa influência da maré. Então você considera, por exemplo, na Amazônia, nós temos uma maré muito forte, você vai muitos quilômetros para o interior também, naquelas várzeas fluviais, essas também são terras da Marinha. E o que diz a nossa Constituição? Que estas terras da Marinha eram, naquela época, destinadas à defesa do território nacional. Mas foi uma defesa sobre a questão da soberania. E hoje em dia são essas as áreas que realmente temos que usar para nos defendermos, para a questão das alterações climáticas.
Acabar com esse número é um enorme retrocesso. E é isso que a PEC traz, ela acaba com essa figura das terras da Marinha, que são terras da União, e repassa gratuitamente para estados e municípios, para até poderem privatizar essas áreas.
Rádio Nacional: Abre caminho à privatização das praias, constituindo um risco não só para a questão do litoral, mas também para o ambiente como um todo?
Ana Paula Prates: É bom deixar claro que a própria PEC, com essa coisa de acabar com as terras da Marinha, não vai privatizar automaticamente as praias. Mas a questão é o acesso às praias. Aí sim, eles podem ser privatizados, porque todas essas terras que ficam a jusante das praias são privatizadas, você começa a ter uma privatização do acesso às praias, que são bens comuns da sociedade brasileira, e depois por outra lei, que é a lei que estabelece o Plano Nacional de Gestão Costeira. E isso é importante deixar claro, a PEC em si não traz essa privatização automática das praias. Sim, tem algumas praias que depois de todos esses anos, com os acréscimos que aconteceram de engorda de praia, aterros, etc., você teria ali algumas peças que seriam consideradas terras da Marinha, mas não todas. Não é uma coisa automática, sabe?
Rádio Nacional: Além dessa história de democratização, a praia é um terreno de livre acesso para todas as pessoas que ali estão, porque na prática você pode mandar construir um condomínio que vai fechar ali e só quem mora naquele condomínio tem acesso. Há também o risco para o próprio meio ambiente, manguezais, manguezais, falésias…
Ana Paula Prates: Isto é o que considero mais importante destacarmos, porque estamos a ver que as alterações climáticas chegaram, tomaram conta e é uma emergência que estamos a viver. E estamos vendo isso em diversas situações, principalmente agora com todo esse caso no Rio Grande do Sul. A salvaguarda que as populações poderiam ter para nos protegermos e nos adaptarmos à questão das alterações climáticas.
Vários países estão mesmo a fazer o oposto. Vários países já privatizaram estas áreas e estão agora a recompra-las precisamente por causa das alterações climáticas. E fazermos isso agora, neste momento, é ir completamente contra a história, novamente. Portanto, é um retrocesso significativo em questões ambientais muito sérias.
Rádio Nacional: A audiência pública desta tarde no Senado acende o sinal vermelho?
Ana Paula Prates: Exatamente, porque a PEC já passou na Câmara, foi em 2022, passou na Câmara, uma noite ela foi votada junto, inclusive, com o PL que também traz a questão dos cassinos, isso é importante lembrar, e também está tramitando junto com o outro PL, o 4444. E esse PL, sim, que diz que as praias poderiam ser privatizadas, porque o PL transforma as praias em área de interesse turístico e que os municípios poderiam privatizar até 10% dessas áreas. Então, tudo isso está acontecendo junto. É um pacote. Então, a PEC já passou na Câmara, está no Senado para ser votada, e aí foi convocada, semana passada, bem rápido, de última hora, essa audiência pública hoje no Senado.
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