Nadar em banheiros públicos. Colchões cara a cara com criminosos. Ouvir comentários intimidadores ou abordagens físicas à noite. Há vários indícios de que sobreviver em abrigos no Rio Grande do Sul (RS) seja mais um pesadelo, depois das chuvas que castigaram os gaúchos. Como se não bastasse o sofrimento vivido pela catástrofe climática, a violência de género é uma realidade vivida por muitas famílias.
Alertados por especialistas, a história vivida pelas vítimas do furacão Katrina nos Estados Unidos parece se repetir no Rio Grande do Sul. Embora as autoridades não confirmem números oficiais, crimes de assédio e violência sexual, abusos e violações de direitos foram denunciados à Polícia Civil, Conselho Tutelar, Delegacia da Mulher e Ministério Público.
Quando surgiram as primeiras notícias sobre o tema, representantes do Instituto E Se Fosse Você, presidido pela ex-deputada federal Manuela d’Ávila (PcdoB), criaram espaços de acolhimento dedicados a mulheres e crianças. Um deles fica no bairro Santana, em Porto Alegre.
Antes de chegar lá, as cenas vivenciadas pelo PAD em uma escola da zona norte de Porto Alegre eram típicas de um filme de terror. Ela prefere não se identificar na reportagem, mas diz que, morando em um quarto com sete homens, ela e a filha sofreram assédio sexual, violência psicológica e ameaças de diversos tipos.
“Disseram que já estiveram presos, que tiveram homicídios pelas costas e passaram a noite falando sacanagem, sob efeito de drogas, falando de violência. E eles ficaram nos observando”, lembra. A entrevistada conta que suas colegas de quarto retiravam itens da despensa para trocar por drogas.
As situações vivenciadas foram constrangedoras, mas quando começou o assédio físico a tensão piorou. “Um deles começou a assediar minha filha (14 anos). Eu não dormi à noite. Passei a noite inteira acordado, abraçando-a, observando-a. Certa noite, o homem pensou que ela estava dormindo e veio tocá-la. Aí perguntei o que ele queria e ele foi embora.”
Além de ser assediada por defender a família, ela mesma foi apalpada pelo rapaz enquanto tentava descansar. Vulnerável, com medo e sentindo-se desrespeitada, a PAD pediu ajuda à direção, mas o que encontrou foi um “até logo”. Não chamaram a polícia e os criminosos permaneceram lá, conta ela, e também preferiu não procurar ajuda, por medo de represálias.
Em busca de segurança, a mulher saiu do abrigo em um dia frio, aos prantos, e tendo que se afastar ainda mais do bairro onde mora. “Estamos seguros agora, mas muitas mulheres estão passando por isso e sofrem em silêncio por medo de se exporem, enquanto ficam impunes”, esbraveja.
Assédio nas ruas
LM procurou abrigo no Instituto E Se Fosse Você após ser assediada na rua, próximo ao Bom Fim, em Porto Alegre. Ela teve a casa inundada e diz que perdeu o companheiro. Foi então que o morador do bairro Humaitá acabou dormindo na rua.
Sob um viaduto da Avenida Garibaldi, ele sentiu alguém movimentando seu corpo. Foi o gatilho para sair em busca de refúgio. “Senti alguém colocando a mão nas minhas calças. Ainda bem que acordei naquela hora, foi horrível”, lembra LM, que posou para o Metrópoles ao contrário, para não ser identificado.
Responsável por duas filhas e uma neta, SOA, de 43 anos, decidiu pedir ajuda antes de ver o pior acontecer. Assim que foi resgatada em Eldorado do Sul, foi acolhida em uma escola do bairro Rubem Berta, em Porto Alegre. Porém, a atitude dos homens do local a intimidou.
“Vi um homem se masturbando no banheiro feminino. Teve também um menino de 30 anos querendo levar as meninas mais novas ao banheiro, e outro que se ofereceu para trocar o disjuntor, enquanto uma menina tomava banho”, lembra ela, apavorada.
Temendo por ela e pelas meninas, ela pediu para ir embora. Agora, ela se sente confortável em seu novo espaço. “Aqui estamos seguros. Os homens só entram no pátio da frente, nem os seguranças circulam na área privada.”
Redes de proteção
Com capacidade para 80 pessoas, o abrigo do bairro de Santana conta atualmente com quase 50 pessoas abrigadas, entre mulheres e crianças, e oferece uma realidade um pouco mais confortável do que a vivida em outros locais.
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Placa com Legenda: “Banheiro com ducha” em abrigo em Porto Alegre
Lara Ely/Especial para Metrópoles
Menina Lara Ely é abusada na rua em Porto Alegre
LM sofreu abusos nas ruas de Porto Alegre durante as enchentes
Lara Ely/Especial para Metrópoles
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SOA presenciou cenas de abusos em abrigo em Porto Alegre
Lara Ely/Especial para Metrópoles
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Abrigo de animais na garagem do Shopping Iguatemi, em Porto Alegre
Lara Ely/Especial para Metrópoles
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Abrigo para vítimas das chuvas gaúchas em Porto Alegre
Lara Ely/Especial para Metrópoles
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Cachorro em abrigo no Rio Grande do Sul
IGO STAR/METRÓPOLES @igoestre
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Segundo Gabriele Lanot Gottlieb, vice-presidente do E Se Fosse Você e uma das coordenadoras do espaço, existem abrigos onde há um chuveiro para cada 200 pessoas. Lá, a média é de 1 em 40. “Os muros caíram, essas situações geralmente acontecem dentro das casas das pessoas”, explica Gabriele, referindo-se aos casos de abusos que muitas vezes já aconteciam nas famílias.
“Quando tomamos conhecimento dessas situações, fizemos o que o poder público deveria ter feito. Imaginávamos que resolveríamos uma questão emergencial e que a prefeitura tomaria providências, mas não foi isso que vimos”, afirma Gabriele.
Existem pelo menos outros três lares temporários em Porto Alegre exclusivos para mulheres e crianças, porém, esses locais não têm capacidade para atender toda a demanda, segundo a advogada Thais Constantin.
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“O que se espera do Estado neste momento é a criação de um sistema de prevenção dentro destes espaços de acolhimento, de forma a evitar a prática destes crimes”, afirma o advogado. “E que os que vierem a ocorrer sejam atendidos por autoridades especializadas em acolher essas vítimas, evitando sua revitimização.”
Thais Constantin reforça que denúncias de abusos sofridos em lares temporários podem ser feitas à Polícia Militar (190), Polícia Civil (197), Central de Atendimento à Mulher (180) e Disque-Disque (181).
Outra forma de denúncia é a plataforma criada recentemente pela Contato Seguro, que gerencia canais de ouvidoria de grandes empresas, com a Doc9, criadora da plataforma SOS RS. Com o objetivo de identificar e combater os problemas que afetam os abrigos, a plataforma encaminha as denúncias de forma anônima aos órgãos competentes.
Aumento nas notificações
Por meio do atendimento, a Secretaria de Segurança do estado informou que morar em abrigos facilitou a notificação de casos que, antes, ficavam escondidos no ambiente domiciliar. A secretaria informou ainda que a Polícia tem atuado e, quando são feitas notificações, são feitas prisões. No entanto, ela não informou o número de incidentes.
Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Carolina Aguirre da Silva afirma que uma força-tarefa criada pelo Conselho Tutelar e Ministério Público verifica todas as denúncias recebidas. Se for o caso, eles são encaminhados à Polícia Civil e a família é acompanhada, inclusive psicologicamente.
Carolina explica que, quando os abrigos recebem crianças desacompanhadas, elas são encaminhadas ao Conselho Tutelar de plantão junto à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Nesse cenário, há equipes de plantão para ouvir e encaminhar.
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